Cozinhar é de tal forma individual que, mesmo tendo coisas reconhecidas como mais fáceis e outras temidas como mais difíceis, durante o processo vamos descobrindo talentos e dificuldades o tempo todo, nas ocasiões mais triviais. Imagina então sendo uma pessoa cega. Somando as questões que decorrem diretamente da deficiência, o capacitismo estrutural, o fato de cada pessoa ser, ainda que dentro de grupos, única... Temos um bom tanto de ingredientes nesse caldo.
Bom, uma das minhas dificuldades específicas recorrentes era picar alho. Mas eu não pretendia desistir. Com a faca, é difícil demais cortar pedaços suficientemente pequenos. Com o espremedor de alho, os pedaços ficavam ainda assim grandes demais. Com o ralador funciona, mas os pedaços também ficam muito grandes e desiguais. Com aqueles cortadores de puxar a cordinha também funciona, mas dá trabalho demais para alguns dias. Com o mixer, idem. Heis que, após várias pesquisas, comprei um pilão. Lindo, de mármore, mais pesado do que eu esperava.
Aguardei ansiosa a entrega, adorei sentir ele nas mãos quando chegou. Mas nem tudo foram só expectativas realizadas. Demorei para acostumar e, principalmente, para achar o melhor jeito de pilar o alho, que palavra bonita é pilar, aliás. Os pedaços, que ficam realmente pequenos, grudam na pedra, o que me irritou e ainda irrita. Não era exatamente a solução perfeita que eu, ilusoriamente, esperava. Mas era uma solução, ainda assim, e eu estava determinada a tentar.
Acontece que era uma solução que me deixava feliz porque, depois do alho, vieram as pimentas e o cardamomo em grãos, os cheiros e o toque. Com isso, a minha relação com os temperos e com a comida, consequentemente, foi mudando mais um pouco. Entendi o que se falava sobre moer pimenta na hora e a diferença entre pimenta branca, do reino e rosa pelo aroma que envolve o ambiente. Comecei a descobrir quais combinações poderia fazer e também a ousar mais nelas. Sinto que esse processo me leva para mais perto da minha comida e de mim mesma.
Hoje, todas essas opções são ferramentas que uso para enfrentar o temido desafio de cortar o alho, algumas mais do que outras. Depende do dia, da quantidade de alho, do meu estado de espírito, do prato pretendido e do resultado esperado. Tudo isso, inclusive essa história, compõe a minha cozinha, pois cozinhar é movimento, como venho aprendendo.
E por que estou escrevendo isso? Para dizer que procurar as nossas próprias soluções, por mais desviantes ou exageradas que elas possam parecer, nunca é em vão. Nunca mesmo. A procura nos leva não só para cada vez mais perto das possíveis soluções, mas principalment para o lugar do imprevisto, onde as novas coisas ganham espaço. E essas coisas inesperadas são boa parte do que constitui nossos caminhos na cozinha e na vida.
Ser sempre colocada no lugar do "diferente" nem sempre me trouxe motivação para tentar coisas novas, quase nunca, na verdade, já que tentar é, muitas vezes, me tornar ainda mais diferente e, claro, distante do esperado, do padrão. Para esse padrão, a criatividade não é exatamente celebrada. Mas só assim eu pude cortar meu alho e, mais importante, encontrar um afago cotidiano para a alma no ato delicioso de pilar. Nem tudo precisa ser apenas funcional.
Lembre-se, as suas soluções importam. Não deixe de procurá-las.
Com uma boa pitada de afeto,
Ana.
Amei suas colocações sobre o lugar do "diferente". Estou sentindo isso com a chegada dos 60 anos e as reações e expectativas em relação ao que faço ou, ao que invento fazer. Mas não deixo de procurar minhas soluções! Obrigada pelo texto lindo.
Colheradas exageradas de afeto para você!
Mais um texto delicioso demais! E cheiroso hehehe