São as mãos que medem as distâncias, calculam as quantidades, reconhecem as texturas. Cozinhar é um trabalho manual para todas as pessoas, mas para nós, pessoas cegas, é ainda mais. As mãos, para mim, são ainda mais importantes e, só depois de compreender isso, eu consegui começar a me sentir a vontade na cozinha.
No começo, quis entender tudo, dominar os procedimentos e a teoria de fazer comida. Quis que tudo na cozinha fizesse sentido. Então vi vídeos, li receitas e depois mais receitas, vasculhei blogs e pesquisei em sites diversos, aproveitei a experiência das pessoas próximas. Fiz perguntas e perssegui as respostas com os meios que tinha. Estava determinada a forçar minha passagem para esse mundo. Fascinada, talvez. Ansiosa, com certeza.
Só que, enquanto eu desbravava refogados, molhos e massas de bolo por todos os lados, me deparei com quão visual é considerado o ato de cozinhar. E, naturalmente, com a falta de acessibilidade. Claro que, sendo quem sou, eu já sabia, não a toa que não tinha tentado antes. Mas, na prática, foi se tornando cansativo achar formas de driblar tudo o que diziam ser difícil ou insuperável para mim. Eram coisas demais, afinal. E resultados diferentes demais, também.
Tão rápido quanto devagar, meus limites, antes rígidos, foram se expandindo e levando os obstáculos junto com eles. Os aromas, vapores e calores foram me envolvendo e as distâncias foram se tornando possibilidades. De repente, eu podia comer a minha própria comida. Eu podia alimentar alguém. De repente, tive acesso a essa alquimia, feitiçaria, quase magia, de cozinhar.
Mas o processo continua. As receitas falam em fios de óleo, tons de dourado e de transparente, cortes e formatos específicos. Raramente se preocupam em falar do gosto na colher, da textura da massa nas pontas dos dedos, do cheiro que sobe com o vapor quente. Das possibilidades. A linguagem, o que é dito, como é dito e também o que não é dito, cria e, ao mesmo tempo, revela padrões. E padrões, ocultos ou não, interfe rem nas nossas ações.
Então, como fazer quando somos desviantes? Quando as ferramentas que são consideradas essenciais, e até mesmo únicas, não estão disponíveis para nós? Esse era o meu dilema sendo uma aspirante a cozinheira cega em um mundo tão visual, de tons e não de texturas, de distâncias e não de toques. Um mundo em que uma imagem literalmente vale mais do que mil palavras.
Eu quis acertar os cortes exatos que as receitas pediam, fatiar e picar em pedaços pequenos e finos, produzir cubinhos perfeitos do mesmo tamanho para ter pratos simétricos. Quis o tom ideal do assado, sem nem sequer já tê-lo visto antes. Quis até mesmo decorar as minhas tortas de forma harmônica o suficiente e que meus bolos crescessem ao ponto de uma ilusão. Quis alcançar os padrões para ser vista. Os padrões dos outros, aqueles inalcançáveis, já que minhas ferramentas eram, e são, outras. E tudo bem.
Logo percebi que não estava dando certo, mas demorou um bom tanto para que eu me desse conta de que os padrões que eu tentava atingir não tinham sido feitos para mim, como tantas outras coisas. Eu precisava dos meus próprios e, para isso, precisava cozinhar muito, por mais clichê que seja. Então, cozinho. Encontro os meus cortes e relevos, o que funciona e o que não, os formatos que posso fazer e os que não valem a pena o trabalho. Cozinhar é sobre mim. A minha comida precisa ser sobre mim. As minhas ferramentas são as minhas mãos, o meu paladar, o que eu posso sentir, provar, tocar e, principalmente, o meu próprio tempo. O meu tempo e o tempo das coisas. Minhas mãos e o que posso fazer com elas. As minhas ferramentas são só minhas e cozinhar, agora, é sobre a tentativa de aprender a usá-las a meu favor.
Que texto maravilhoso!!!
Li seu texto ontem e hoje fui reler algumas receitas publicadas no meu blog. Resolvi que vou reescrever parte do texto com um novo olhar sobre as descrições e modo de preparo. Precisamos conversar e trocar ideias! Aceito sugestões!!!